O encontro de Angela-Lago e Drummond
Cristiane Tavares, coordenadora do Programa Myra, escreveu uma resenha sobre o livro O menino Drummond, organizado por Angela-Lago, Companhia das Letrinhas. Veja o texto abaixo ou no site da Revista Emília, onde ela foi publicada originalmente em 27/09/2012.
É por um estreito e preciso corte em forma de janela que Angela Lago apresenta o rosto de Drummond, com seus olhos miúdos e nariz longilíneo, em desenho minimalista na capa do livro Menino Drummond. Da janela, avista-se um pedacinho de azul enluarado, em meio a um resplandecente céu amarelo brilhante que ilumina o fundo de toda a capa. Desdobrando a guarda do livro, descobrimos que Drummond foi mesmo levado ao topo pela ilustradora: um “menino Drummond” encontra-se no alto de uma escada, regando de estrelas o céu do leitor.
“É mais ou menos o que senti. Meu lápis não queria desenhar Drummond por conta da responsabilidade. É uma janela muito alta para mim”1, explica Angela-Lago, que ilustrou e selecionou os 22 poemas que compõem esta belíssima coletânea destinada ao público infantil e juvenil, publicada pela Companhia das Letrinhas. Neste ano, são lembrados os 110 anos de nascimento e os 25 anos da morte de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), quando a editora passou a publicar a obra do autor, realizando uma série de eventos em sua homenagem.
Os poemas selecionados por Angela Lago abarcam obras de Drummond lançadas entre 1930 e 1984, apresentados cronologicamente no livro. Extraídos de 11 títulos do autor, que vão de Alguma poesia (1930) à Corpo (1984), os poemas representam distintas fases de Drummond e oferecem, aos jovens leitores, um contato amplo com sua poesia. Apesar de reconhecer a densidade da poética drummondiana, Angela Lago não minimiza a capacidade leitora de jovens e crianças e não se preocupa com a restrição de uma obra a um público específico: “Consegui cumprir esta seleção com muita dificuldade, pois a obra dele é densa demais para as crianças (…) Um bom livro para crianças também pode chegar aos adultos”.2
No livro, os poemas são apresentados sempre ao lado de uma ilustração, em pares de páginas que conferem uma significação peculiar à leitura. Para cada dupla poema-ilustração, uma cor é usada ao fundo: vermelho para a “poesia que inunda minha vida inteira”; lilás acinzentado para a “sombra de meu bem que morreu há tanto tempo”; azul para a procura “de uma noiva no ar como um passarinho”; ocre para a “hora difícil, em que a dúvida penetra as almas”; verde-esperança para a “canção que faça acordar os homens e adormecer as crianças”. Estas e algumas outras cores são extraídas da palheta da ilustradora em contraste perfeito com a pena do poeta.
A harmonia entre texto e ilustração, nesse caso, deve-se a inúmeros fatores, que vão da subjetividade que une autor e ilustradora em sua comum mineirice a muitos outros que, certamente, não serão percebidos aqui. Um deles é, sem dúvida, o fato de Angela Lago ter em Drummond uma referência: “Estava diante do projeto que ilumina minha vida inteira. É um poeta que fez a cabeça da minha geração”3. Ainda que não o tenha conhecido pessoalmente, a ilustradora chegou a se corresponder com o poeta por cartas, mostrando-lhe seus primeiros trabalhos para as crianças: “Ele respondeu muito amável e generoso. Lembro-me da sensação de gentileza dele”. Leitora e admiradora de Drummond, ela retribui a gentileza e revela ter optado por um projeto gráfico em que a ilustração não disputa espaço com os poemas: “Deixei para o poema o lugar do brilho dele, para que o leitor não desviasse o olhar”. De fato, o que ocorre durante a leitura é quase um prolongamento do olhar que escorrega do texto para a ilustração e vice-versa, num movimento natural e complementar, sem rupturas bruscas. É como se a ilustradora fizesse coro com o poema da também poeta mineira Adélia Prado, intitulado “Todos fazem um poema a Carlos Drummond de Andrade4”: Menino Drummond, como obra, é um poema de Angela-Lago para o seu mestre poeta.
Um outro fator que possivelmente contribuiu para o feliz resultado do livro é a compreensão que uma ilustradora estudiosa, experiente e inovadora como Angela-Lago tem do próprio conceito de poesia. Em entrevista à Rede Minas, ela explica parte desse processo criativo: “ilustrar poesia é sempre um desafio, a poesia cria metáforas visuais ela mesmo (…) fala de ‘algo mais’ e ilustrar ‘algo mais’ é difícil, é uma coisa que, de alguma forma, se quer invisível.”5 Como ilustrar o ‘algo mais’ que se quer invisível no poema? Como dialogar plasticamente com as metáforas já visuais do texto? Ao folhearmos Menino Drummond descobrimos algumas respostas para os desafios citados pela ilustradora:
A escolha das cores que pintam o fundo das páginas não deixa de ser uma metáfora visual em diálogo com os sentimentos poéticos que predominam em cada um dos textos:
À contenção, própria da linguagem poética (o máximo de significação, com o mínimo de palavras), corresponde uma contenção da linguagem plástica (mínimo de cores e de traços):
A opção por pinçar e ilustrar versos destacados do poema por conterem uma imagem visual que condensa a significação e captura a amplitude do texto, como em “Tristeza no céu”, do qual a ilustradora realça o verso “outra pluma, o céu se desfaz”:
A percepção atenta do aspecto lúdico presente no texto – “humor é um traço constante na poesia de Drummond”6 – , certamente uma das portas de entrada para o público jovem, e a habilidade de mantê-lo visualmente é o que ocorre na ilustração do tão conhecido poema “Quadrilha”. O personagem destacado na ilustração é, ironicamente, justamente aquele que “não tinha entrado na história”, enquanto os demais personagens brincam de pega-pega e esconde-esconde, como acontece metaforicamente no poema:
A capacidade de traduzir em desenho belas metáforas criadas com palavras é o que temos no poema “Para sempre”, em que a ilustração da mãe com um filho adulto no colo resume a força poética do texto, expressa principalmente nos versos finais: “mãe ficará sempre/ junto de seu filho/ e ele, velho embora, será pequenino/ feito grão de milho.”:
Por fim, um aspecto que salta aos olhos na leitura de Menino Drummond, é a coerência estética da obra: da capa, passando pelas guardas que se desdobram, já comentadas anteriormente, às ilustrações que reverenciam com maestria os textos do poeta e, claro, a preciosa seleção dos poemas. A opção por apresentá-los cronologicamente, não apenas respeita o processo criativo de Drummond, com sua lógica interna, mas permite ao pequeno leitor iniciar e finalizar um ciclo de leitura que certamente significará um mergulho inesquecível na obra poética de um dos mais importantes escritores da nossa língua. Exemplo disso, é a escolha dos poemas que abrem e fecham o livro – “Poesia” e “Lembrete”. Explicitamente metalinguísticos, são um convite para que o pequeno leitor penetre na leitura não apenas pelo viés das brincadeiras sonoras, visuais e semânticas com palavras e imagens, mas sobretudo atento ao próprio fazer poético e artístico.
No primeiro poema, extraído de Alguma Poesia (1930), menciona-se a constante procura da poesia (título que Drummond daria a um outro poema, em 1943) e a impossibilidade de apreendê-la “com um verso que a pena não quer escrever”. O breve contato com o labor do poeta em tensa relação com a palavra, sua matéria-prima, introduz suavemente o leitor no universo drummondiano, marcado pelo “rigor da fala madura, lastreada na recusa e na contensão”7, de viés predominantemente lírico nessa fase inicial. O último poema, extraído de Corpo (1984), une o prosaico e o metafísico, na mesma contensão linguística que remete o leitor de volta ao poema inicial: novamente, a procura da poesia, dessa vez, escondida no inexplicável da vida.
Ambos ilustrados em fundo vermelho, os poemas dialogam também nas escolhas sígnicas de Angela-Lago: se no primeiro, o destaque é a própria imagem do poeta escrevendo a lápis o que não se pode escrever com palavras, no último, vários elementos presentes nas ilustrações que compõem o livro voltam a aparecer, entrando no envelope que parece querer conter o que não se pode apreender. É como se o lembrete final para o leitor fosse um impossível aviso de onde encontrar a poesia – no indizível, no quase invisível, no inexplicável.
Notas
1. Depoimentos da ilustradora Angela-Lago à jornalista Elemara Duarte, em “Ângela-Lago ilumina versos de Carlos Drummond de Andrade”. Belo Horizonte: Hoje em Dia.
2. Idem.
3. Idem.
4. Adélia Prado, Poesia reunida. São Paulo: Siciliano, 1991, p.46.
5. Depoimentos da ilustradora Angela-Lago no Programa Agenda – Rede Minas.
6. Alfredo Bosi, História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2011, p.441.
7. Idem, p. 444.