Poetas do quintal, do mínimo, da irreverência


O Blog da Letrinhas publicou no Dia Mundial da Poesia (21/03) um artigo sobre poetas brasileiros que também escreveram para as crianças.

Veja abaixo ou no próprio site do Blog da Letrinhas.


Publicado em 21 de Março de 2019

 

Hoje, 21/3, é o Dia Mundial da Poesia, criado em 1999, na 30ª Conferência Geral de Paris da Unesco, com o objetivo de “honrar os poetas, reviver as tradições orais dos recitais de poesia, promover a leitura, a escrita e o ensino de poesia, adotar a convergência entre a poesia e outras artes, como o teatro, a dança, a música e a pintura, e aumentar a visibilidade da poesia na mídia”. Assim como lembrou o diretor-geral da organização, Audrey Azoulay, naquele dia, a poesia “é também essa arte única que nos faz cientes da extraordinária diversidade humana: a diversidade de línguas e culturas. É um lugar de encontro entre o indivíduo e o mundo. É uma introdução à diferença, ao diálogo e à paz. É um testemunho da universalidade da condição humana além dos inúmeros sentidos usados para descrevê-la”.

Para comemorar essa data especial, relembramos a seguir alguns poetas da casa e seus inspiradores versos.

 

O poeta discreto

 

“O sapo saltou na sopa

de um sujeito que, sem mais papo, 

deu-lhe um sopapo e gritou: — Opa!

Não tomo sopa de sapo!”

(Poema do livro Uma letra puxa a outra, de José Paulo Paes)

 

José Paulo Paes foi desses poetas que não pôde dedicar-se inteiramente à poesia. Trabalhou durante 11 anos em um laboratório farmacêutico e quase 20 na editora Cultrix. Foi só aos 55 anos que conseguiu a aposentadoria e passou a se concentrar integralmente à escrita. Ele também era ensaísta, colaborador assíduo da imprensa e tradutor de poesia. Pela Companhia das Letrinhas, publicou títulos como Um número depois do outro Ri melhor quem ri primeiro. Casou-se com Dora, esposa de toda uma vida, bailarina que o ajudou a lidar com uma doença circulatória que chegou a levar-lhe uma perna. Após a morte, em 1998, foi lembrado por amigos como um sujeito discreto, como no relato singelo do crítico de arte Rodrigo Naves, publicado na Revista Piauí. O poeta Lalau também tem boas recordações de Paes, seu padrinho de poesia na Companhia das Letrinhas.

 

 

O poeta do inútil

 

“[…] O que faz do anel um anel

é a coisa nele guardada:

 

um desejo de beleza,

uma história, uma data,

 

a recordação da avó,

de uma antiga namorada, […]”

(Trecho do poema “Anel”, do livro Cada coisa, de Eucanaã Ferraz)

 

 

O pai de Eucanaã Ferraz não sonhava com um filho poeta: queria filho cidadão de bem, diplomado. Ele não tinha sequer livros de literatura em casa, mas estantes de obras voltadas à odontologia, sua área de atuação. Foi na escola que o escritor, nascido em 1961 no Rio de Janeiro, teve seus primeiros contatos com a literatura, aquela que não devia nenhuma utilidade a ninguém. Fernando Pessoa foi um grande marco dessa época, sendo Alberto Caeiro seu heterônimo favorito. Virou professor, poeta, ensaísta. Pela Companhia das Letrinhas, publicou livros como Cada coisaEm cima daquela serra Água sim. Leia aqui uma entrevista que o poeta concedeu ao Blog da Letrinhas.

 

A poeta da irreverência

 

Cocanha é o país que enfeitiça,
Atrai pela santa preguiça
Da tal vida airada
Do ‘não fazer nada’,
Do ‘nada importa’ por premissa.

Agora, responda ligeiro,
Não leve um dia inteiro
Para decidir
Se quer residir
Naquele país, tão maneiro!

(Trecho de Limeriques da cocanha, de Tatiana Belinky)

 

Taquígrafa, secretária, representante de produtores de celulose em fábricas de papel, tradutora, roteirista, crítica de teatro… Tatiana Belinky era mais que uma poeta, exercendo diversas atividades ao longo de sua vida, iniciada em 1919 em Petrogrado (atual São Petesburgo), na Rússia. Chegou ao Brasil apenas nove anos depois, estudou na Faculdade de Filosofia de São Bento, mas não concluiu o curso.  Após a morte do pai, assumiu os negócios familiares na indústria de papel. Adaptou peças infantis com o marido Júlio Gouveia; trabalharam para a TV Tupi, em um programa infantil semanal. Depois, criaram uma série inspirada em O Sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato, que foi ao ar entre 1968 e 1969. A poeta faleceu em 2013. Pela Companhia das Letrinhas, publicou livros como Um caldeirão de poemas Ser criança.

 

O poeta da liberdade

 

“Passa na rua um polícia.

— Uma briga? Que delícia!

O polícia era um cavalo

Montado noutro cavalo.

Entra como um pé de vento

Prende tudo num momento.

— Hão de ficar vida e meia

Descansando na cadeia.”

(Trecho de Pé de pilão, de Mario Quintana)

 

 

O prédio que hoje comporta a Casa de Cultura Mario Quintana, em Porto Alegre, nem sempre foi espaço das artes. Durante muito tempo foi apenas Hotel Majestic, onde morou durante 12 anos, no apartamento 217, o poeta natural de Alegrete (RS), nascido em 1906. Quintana viveu de quarto de hotel em quarto de hotel durante toda a vida, sem nunca casar-se nem ter filhos. Não chegou a ser reconhecido pela Academia Brasileira de Letras, cuja cadeira chegou a disputar em 1981, sem sucesso. Mas recebeu algumas homenagens o escritor, que chegou a participar até da Revolução de 1930 (evento histórico que levou Getúlio Vargas ao poder). Entre elas, uma placa de bronze de sua cidade natal. Sobre ela, apenas comentou: “Um engano em bronze é um engano eterno”. Sua obra é considerada por críticos uma “poética da negação”, que exalta o contraditório e a liberdade. No catálogo da Companhia das Letrinhas, é possível ler Pé de pilão O batalhão das letras.

 

A poeta da academia

“O poema incendeia, reconsidera, desiste. Nem a espiral

de um ponto de vista ardentemente perseguido nem grãos

de luz sem destino. O olhar exploratório ainda não é a

imagem. Os poemas são sapatos. As imagens emborcam.”

(Trecho do livro A retornada, da editora Relicário, de Laura Erber)

 

O ambiente acadêmico e artístico misturam-se intensamente na vida de Laura Erber, que é poeta, escritora, professora universitária e artista visual. De suas pesquisas na UNIRIO, onde leciona Teoria do Teatro, tira a inspiração para alguns de seus trabalhos criativos. Também tem uma própria editora, a Zazie Edições, voltada a teoria e crítica de artes. Está entre os vinte melhores jovens autores brasileiros, segundo a seleção da revista Granta de 2012. Tem publicado pela Companhia das Letrinhas Nadinha de nada, e já escreveu para o Blog da Letrinhas sobre a literatura infantil nórdica, na seção Caraminholas.

 

A poeta multilígue

 

“Você vai se confundir de novo,

claro, como já se esperava.

Você vai se confundir

até quando passar a passarada.

Vá com cuidado, passo a passo. 

E olhe bem onde pisa.

Lembre que o equilíbrio

é o segredo da vida. 

Faça tudo com disposição e sem medo.

E nunca confunda o pé direito com o pé esquerdo.”

(Trecho de Ah, os lugares aonde você irá!, de Dr. Seuss, na tradução de Bruna Beber)

 

Nascida em 1984, a poeta, artista visual e tradutora Bruna Beber tem textos publicados em mais de seis países, como Espanha, Portugal e Argentina. Em 2014, foi convidada para participar da Göteborg Book Fair, a Feira do Livro da Suécia, em que integrou a comissão de escritores que representaram o Brasil. Como artista visual, realizou sua primeira exposição individual em 2016, a mostra Brinquedos Espalhados, no Rio de Janeiro. Pela Companhia das Letrinhas, traduziu a obra do americano Dr. Seuss, que incluem os livros Como o Grinch roubou o NatalAh, os lugares aonde você irá! O Lórax. Leia entrevista com a poeta para o Blog da Letrinhas aqui.

 

O poeta do mínimo

 

“Pessoas desimportantes 

dão para a poesia

qualquer pessoa ou escada

 

Tudo o que explique

    a lagartixa da esteira

    e a laminação de sabiás

é muito importante para a poesia

 

O que é bom para o lixo é bom para a poesia”

(Trecho de “Matéria de poesia”, em Meu quintal é maior que o mundo, de Manoel de Barros)

Foto Marcelo Buainain

 

Manoel de Barros ganhou notoriedade pelas “desimportâncias” que compõem seus versos. Infância vivida em Cuiabá, cresceu cercado pela natureza do Pantanal, na fazenda de gado que recebeu como herança da família, até a sua morte, em 2014, aos 97 anos. Ganhou diversos prêmios literários em vida, mas por vezes é lembrado pelo reconhecimento de outro escritor – Carlos Drummond de Andrade, que o legitimou como maior poeta brasileiro vivo. Teve parte de sua vida registrada no documentário “Só dez por cento é mentira”, de Pedro Cezar, e até hoje é lembrado pelo apreço às miudezas, tema recorrente de sua obra. Na Companhia das Letrinhas, tem publicado Cantigas por um passarinho à toa.

 

O poeta musical

 

“O sonho do joão-de-barro:

além da casa própria 

ter um carro”

 

“O golfinho salta

onde fica o trampolim?

Ele responde: ‘dentro de mim'”

(Poemas de Zoo zureta, de Fabrício Corsaletti)

 

Colunista do jornal Folha de S. Paulo, Fabrício Corsaletti nasceu na cidade paulista de Santo Anastácio, em 1978. Conta que teve a infância mais musical do que literária, marcada pelas canções populares que o pai, compositor de marchinhas, trazia para casa. Quando encontrou a literatura, no entanto, o efeito foi imediato: começou a escrever ao mesmo tempo em que começou a ler. E não parou mais. Tem diversos livros de prosa e poesia publicados. Pela Companhia das Letrinhas, é autor de Zoo zuretaZoo zoado Poemas com macarrão. Confira entrevista com o poeta para o Blog da Letrinhas.

 

*Ilustração Marcelo Tolentino