Uma casa de invenção – resenha de A Menina dos Livros
Cristiane Tavares, coordenadora do Myra, escreveu a resenha do livro “A Menina dos Livros”, de Oliver Jeffers (ed. Pequena Zahar) publicada pela revista Quatro Cinco Um veja abaixo ou no site da Revista Quatro Cinco Um.
Publicado originalmente em 01 de junho de 2018
Uma casa de invenção
Artistas criam imagens a partir de trechos de clássicos da literatura em obra sobre a liberdade da imaginação
Jeffers, Oliver & Winston, Sam
Oliver Jeffers e Sam Winston queriam celebrar o amor pela literatura clássica infantojuvenil. Capturar, de um jeito inusitado, o encantamento que surge durante a leitura de uma história atemporal. Com A menina dos livros, realizaram essa homenagem de modo original e ainda levaram o prêmio Bologna Ragazzi de 2017.
Jeffers, um dos mais importantes autores contemporâneos para crianças, é um artista reconhecido por suas ilustrações e caligrafia características, com livros premiados e traduzidos para mais de trinta idiomas. Winston é artista plástico e tem livros que integram coleções permanentes em importantes museus e bibliotecas ao redor do mundo.
Um projeto como este poderia resultar em exageros, o que facilmente ocorre quando a intenção é render homenagens. Não é o caso. Talvez porque a homenageada não seja a literatura “infantojuvenil” tal como por muito tempo foi concebida — literatura “menor”, com intencionalidade didática e moralizante. O que mora nos “clássicos” infantojuvenis não é diferente do que mora na “grande literatura” entendida como expressão artística, seja ela destinada a qualquer público.
Difícil “falar sobre” este livro. Ele precisa, sobretudo, ser visto e revisto: cada folha, palavra por palavra de cada linha, traço por traço de cada imagem que se forma nesse mar de histórias reverenciadas.
A capa já é um convite para buscar chaves que ajudem a abrir a percepção e os sentidos. Um livro vermelho, com uma fechadura dourada no centro. Uma menina, em toda sua transparência de água, trajando vestido-marinheiro, sentada no topo do livro. A sombra que se projeta atrás dele é formada por frases de cantigas, contos, romances, aventuras fantásticas. É esse universo metaliterário que o leitor é convidado a habitar.
As guardas estão completamente prenchidas por letrinhas minúsculas, algumas em negrito, onde se leem títulos de obras infantis e juvenis e seus respectivos autores: “Sapo cururu cantiga popular Ao redor da lua de Jules Verne Capitães da areia de Jorge Amado O pequeno polegar contado por Charles Perrault” dentre tantos ali guardados.
Para Hurbineck
Na página da dedicatória, encontramos uma das possíveis chaves para ler o livro para além da singela homenagem à literatura como casa da infância: “Para a Lila, de Sam / Para a Luella, de Oliver (…) E para o Hurbineck”. Segue um trecho do livro A trégua (1963), do italiano Primo Levi: “Hurbineck morreu nos primeiros dias de março de 1945, liberto mas não redimido. Nada resta dele: seu testemunho se dá por meio de minhas palavras”. Hurbineck é personagem nessa narrativa-testemunho em que Levi conta sua longa viagem de volta para casa depois da libertação de Auschwitz. É uma criança que morre aos três anos de idade num campo de concentração, sobre quem pouco ou nada se sabia.
Não se pode desconsiderar uma dedicatória como essa. O tributo, então, se torna ainda maior: não apenas as histórias narradas para a infância são reverenciadas aqui. O livro nos lembra, a cada escolha, o valor da liberdade. E não nos deixa esquecer o alcance redentor das palavras quando feitas matéria-prima da memória.
A personagem menina dos livros, vinda do mundo de histórias, está sentada em uma jangada, com aquele mesmo livro da capa nas mãos. O que impulsiona sua jangada não é uma vela comum, mas sim uma página amarelada de livro.
Ela nos conta que flutua em sua imaginação e o que vemos nas imagens é um mar de letras, composto por trechos de histórias criteriosamente escolhidas para dialogar com cada momento dessa travessia. Nesse início, são excertos de Robinson Crusoé, O conde de Monte Cristo e A Ilha do Tesouro. Logo o mar se transforma em uma enorme onda que se projeta sobre a casa do menino que passará a acompanhá-la: “eu naveguei pelo mar das palavras para perguntar se você quer vir comigo”. Antes que o menino e o leitor aceitem o convite, é preciso lembrar do esquecimento.
Nessa parte da narrativa, o menino observa um adulto lendo jornal. Em suas páginas as palavras não fazem sentido. Diferentemente das palavras que formam o mar de histórias nas páginas anteriores, nessas, as palavras se repetem exaustivamente, sob os títulos “Coisas Importantes/ Coisas Sérias/ Negócios/ Os fatos”. E projetam, nos óculos do adulto, apenas números. Nesse caso, as palavras não habitam a imaginação, não libertam e não fazem sentido.
A menina dá as mãos para o menino e ambos seguem viagem por cenários que logo reconhecemos, mas que são apresentados com originalidade e beleza: lombadas de livros viram tronco de árvore em meio à floresta, letras e palavras desenham montanhas, refrões de cantigas de ninar formam nuvens. O passeio dos dois chega, enfim, à casa de invenção, “onde todos podem entrar”. O livro vermelho com fechadura dourada agora está nas mãos do menino. A chave que tudo abre só aparece na última página e vem com uma etiqueta onde se lê: “porque a imaginação é livre.”
Ilustração de Oliver Jeffers e Sam Winston