Livro ilustrado não ficcional


Veja o artigo “Livro ilustrado não-ficcional”, assinado por Sandra Medrano, da Comunidade Educativa CEDAC, publicado pela Revista Emília abaixo ou no site da Revista Emília.


Publicado originalmente em 17 de setembro de 2013.

Ao pensarmos em livros para crianças, normalmente nos vêm à lembrança livros ficcionais, ou os chamados literários. Porém, ao nos determos um pouco mais sobre os livros disponíveis, verificamos que não somente os ficcionais encontram-se no rol de ótimos livros para encantar os pequenos e possibilitar a eles a entrada na leitura. Que outros livros são esses? Por ora os denominaremos não ficcionais, para distingui-los dos primeiros. O que nos interessa, aqui, é propor uma reflexão sobre que livros não ficcionais seriam boas portas de entrada para leitura das crianças e quais contribuições esses livros podem trazer para a formação dos leitores iniciantes.

Apesar dessa distinção entre ficcionais e não ficcionais, é preciso considerar que a fronteira entre esses dois modos de conceber os livros é bastante fluida e movediça. Para saber de que livros estamos falando, vamos nos valer da ideia de continuum para compreender que estes podem se posicionar ao longo de um eixo em que, de um lado identificamos os livros informativos que organizam seu conteúdo como verbetes enciclopédicos, como, por exemplo, o livro Procura-se! Galeria de animais ameaçados de extinção (Vários autores/Mario Bag. São Paulo: Companhia das Letrinhas/Ciência Hoje das Crianças, 2007), em que os dados científicos são apresentados de maneira criteriosa ao longo do texto, acompanhado de imagens que identificam visualmente o animal. Do lado oposto desse eixo contínuo, poderíamos encontrar o livro Princesas esquecidas ou desconhecidas (São Paulo: Salamandra, 2008), de Philippe Lechermeier e Rébecca Dautremer, que parte de um conteúdo ficcional, mas o apresenta utilizando o formato enciclopédico, com definições, exemplos, esquemas, índice temático e alfabético, típico das enciclopédias mais renomadas.

Ao longo desse eixo poderiam estar diferentes livros que, ora mais estritamente informativos, ora misturando aspectos ficcionais, mas se valendo das características desses outros, formam um livro distinto das ficções propriamente ditas, mesclando-se com elas, no entanto, em um dos extremos. Podemos também pensar em outro continuum que parte de um extremo definido pelos livros informativos sem enredo narrativo, como, por exemplo, os livros como A joaninha (Melhoramentos, 1991), da coleção Minhas primeiras descobertas, em que os dados sobre como é o inseto, sua constituição, alimentação etc. são apresentados por meio de imagens que se compõem a partir da sobreposição de páginas (uma opaca e outra transparente) e informações científicas ao longo do livro.

No outro extremo desse contínuo poderíamos encontrar os livros de Babette Cole, como Mamãe nunca me contou (Ática, 2003), livro que – como indica Ana Garralón – “combina um texto mais ou menos ficcional, isto é, pessoal, com uma estrutura interna ordenada e uma informação que, apesar do tom às vezes informal, não abre mão do rigor”. Nesse segundo continuum – que vai do livro informativo sem enredo narrativo ao informativo com enredo narrativo –, poderíamos localizar na sequência vários outros títulos partindo de um ponto a outro, como o livro Adivinhem onde vivem (São Paulo: Brinque Book, 2012), de Liesbet Slegers; Lá em casa somos (São Paulo: CosacNaify, 2012), de Isabel Minhós Martins e Madalena Matoso; Minha casa azul (São Paulo: SM, 2009), de Alain Serres e Edmeé Cannard; Eu cresci aqui (Rio de Janeiro: Pequena Zahar, 2012), de Anne Crausaz; os livros de Peter Sís: O muro (São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2012), O mensageiro das estrelas (São Paulo: Ática, 1999), A árvore da vida (Ática, 2004); alguns livros que contam a vida de personagens conhecidos: Frida (São Paulo: Cosac Naify, 2004), de Jonah Winter e Ana Juan; O menino que mordeu Picasso (São Paulo: CosacNaify, 2011), de Antony Penrose; Jemmy Button (Rio de Janeiro: Pequena Zahar, 2012), de Jennifer Uman Valério Vidali e Alix Barzelay; Lineia no Jardim de Monet (São Paulo: Salamandra, 1992), de Christina Bjõrk e Lena Anderson; Diferente como Channel (São Paulo: CosacNaify, 2009), de Elizabeth Matthews; Um outro país para Azzi (São Paulo: Pulo do Gato, 2012), de Sarah Garland; É um livro (São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2009), de Lane Smith; e Para que serve um livro? (São Paulo: Pulo do Gato, 2011), de Chloé Legeay.

 

 

Essa pequena seleção não esgota os títulos que poderiam compor esse contínuo, mas tem a intenção de colaborar na compreensão da ideia de um universo de livros que são concebidos com uma diversidade de aspectos que se movem de uma ponta a outra dependendo das características aqui destacadas. Isso nos mostra que, tanto no que se refere ao extremo de um livro com texto ficcional e formato enciclopédico como a um livro que parte de uma narrativa com toque ficcional, mas com conteúdo científico ou histórico, essa divisão entre ficção e não ficção é bastante tênue. A análise dos continuuns permite, ainda, visualizar um conjunto de livros com algumas qualidades distintivas ao longo de sua distribuição. Mas qual a contribuição desses livros não ficcionais para a formação de leitores e que experiência de leitura possibilitam?

Louise M. Rosenblatt, em La literatura como exploración, traz o conceito transacional da leitura, em que propõe a superação da visão dualista de pensar o texto e o leitor na qual ou o leitor atua sobre o texto (leitor interpreta o texto) ou o texto atua sobre o leitor (leitor responde ao texto), para uma leitura transacional, em que “o leitor infunde significados intelectuais e emocionais à configuração de símbolos verbais e esses símbolos canalizam pensamentos e sentimentos”.

Com essa forma de compreender a leitura, podemos considerar que o sentido não está só no texto ou só no leitor, mas na relação entre ambos, numa contribuição contínua para a construção de significados. Assim, não é o texto em si que define como pode ser lido, mas é na relação entre as intenções e conhecimentos do leitor e o conteúdo do texto que se dá a leitura, a transação.

Essa leitura pode, segundo Rosenblatt, ser mais estética ou mais eferente. Abordando sinteticamente aqui, a postura estética na leitura estaria mais relacionada aos aspectos afetivos e a postura eferente, centrada principalmente em selecionar e abstrair analiticamente as informações. Pensando na formação de leitores, essas colocações nos remetem à necessidade de proporcionar às crianças, desde muito cedo, condições para que possam desenvolver a capacidade de adotar ambas as posturas para serem leitores autônomos e críticos ao lidarem com a diversidade de leituras que enfrentarão vida afora.

Uma das maneiras de possibilitar às crianças espaço para essa experiência leitora é oferecendo livros que, segundo Ana Garralón, “são excelentes para criar pontes entre essas duas formas de ler, estética e eferente, auxiliando os leitores a indagar o que significa uma leitura prática enquanto lhes oferecemos textos que lhes brindam leituras estéticas sugestivas”. Exemplos desse tipo de livro são alguns dentre os chamados livros álbum (livro ilustrado/álbum ilustrado/picturebook – denominação em construção no Brasil), como os já citados livros de Peter Sís ou o também citado Minha casa azul. Esses livros trazem informações históricas ou científicas, por meio da amálgama texto-imagem-suporte, típico do livro álbum, que possibilita ao leitor ora assumir uma postura mais eferente ao analisar as informações, ora mais estética ao se envolver com as imagens, as ideias e os sentimentos proporcionados pelo livro.

A formação do leitor pode, dessa forma, se dar também por meio de um livro não ficcional, a partir de uma experiência leitora distinta, uma leitura que abre para novas questões, instiga novos conhecimentos, desafia intelectualmente o leitor, de forma a colocá-lo numa posição ativa de construção de conhecimentos.

 


Referências:

Ana Garralón, “Ficção e informação: tendências nos livros informativos”. Em: Revista Emília: http://www.revistaemilia.com.br/mostra.php?id=126

Louise M. Rosenblatt, La literatura como exploración. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 2002


* Este artigo foi publicado na Revista E – SESC – Agosto de 2013 – nº 2 – ano 20 – p. 42 e 43.