Beleza, jovens e quarentena


Em artigo publicado pela Revista Emília, Sara Bertrand fala da quarentena imposta pela pandemia de covid-19 e jovens. Veja abaixo ou no site da Revista Emília.


“E o que é uma sociedade que não tem mais valor a não ser o da sobrevivência?”
Giorgio Agamben

 

“Nosso senso/sentido de um universo com sentido também procede da beleza”, diz François Cheng neste quase trava-línguas que é essa frase, e quanta verdade, ultimamente, as notícias dão para pensarmos muito sobre o belo e o feio. Como exemplo, os pais que testaram positivo [para Covid-19] na Espanha e tiveram que ceder seus filhos de três e cinco anos aos serviços sociais do Estado, porque ninguém, nenhum familiar, queria recebê-los em casa. Uma ferida que será difícil de cicatrizar, imagino, porque como explicar o trauma para esses filhos? Como dizer a eles que seus parentes decidiram que eles eram o inimigo – que tipo de inimigo é um menino ou menina assintomático? Que tipo de tios são esses que preferem a invisibilidade de um vírus à contenção de seus pequenos? Ou, já em um nível menos dramático e mais prosaico, como explicar às crianças e jovens a ânsia de seus pais em estocar quando arrasavam supermercados e farmácias, sem se preocupar que o outro, ao lado, ficaria sem máscara, luvas ou comida? “Toda beleza está precisamente ligada à unicidade do instante. Uma verdadeira beleza nunca seria um estado perpetuamente ancorado à sua fixidez. Seu advento, sua aparição ali, constitui sempre um instante único; é seu modo de ser”. A natureza, nos explica Cheng, é bela sem querer sê-lo; o Monte Fuji ou o Monte Lu – ou, mais perto de nós, a Cordilheira dos Andes –, no outono ou na primavera, oferecem estampas literalmente sagradas, é assim que são percebidos, porque elevam a alma, mas são cordilheira ou monte, nuvens ou névoa, cores ao amanhecer ou entardecer, aquela estranha reunião de matérias, nada programado, um instante frágil e fugaz, pura e verdadeiramente belo. Por outro lado, com o ser humano o assunto é mais complexo, somos animais complexos, cheios de meandros, e muitas vezes a beleza em nós é resultado de um impulso, uma vontade de ser, em outras palavras, uma certa porfia. “Há algum gesto de bondade que não seja belo?”, se pergunta Cheng.

Nessas horas, quando a humanidade se debate contra um vírus, quando fica claro que não é uma pandemia pior do que outras, mas, antes, um problema de políticas públicas, especificamente de saúde pública, é a hora de perguntar que tipo de sociedade fomos, por que nossos hospitais públicos não estavam preparados para acolher devidamente seus habitantes. Se esse novo vírus – altamente contagioso, é verdade – revela-se fatal para pacientes de risco, mas absolutamente controlável com os meios disponíveis para a maioria da população, falamos de leitos, insumos, equipamentos médicos, enfim, “coisas”, por que nesta era, neste momento, lamentamos o estado de nossa infraestrutura básica e pedimos à população que “fique em casa” para aplacar a curva? Medida de contenção, entendo e não me interpretem mal, fui uma das primeiras a assumir quarentena voluntária, em parte porque ler e escrever supõem um certo distanciamento social ao qual estou acostumada, mas obrigar populações inteiras a subtrair-se de suas vidas, de estar com familiares, amigos, pessoas próximas ou sei lá, porque os Estados, todos, sem exceção, não têm à disposição o que é necessário para curar seus compatriotas, parece-me que demonstra uma vontade de ser que está muito longe de ser bela. Que tipo de adultinhos somos? – perdoem-me pelo diminutivo, mas merecemos isso.

Talvez essas reflexões sejam inúteis, pois diante da pergunta o que você teria feito, como resolveria a equação, ou seja, o número de leitos versus pacientes, não tenho uma resposta prática, mas esse devir, pensar em nossas crianças, centenas de milhares que a esta hora estão, literalmente, olhando para o rosto da Górgona na Espanha ou na Itália, pensar em nossos jovens, centenas de milhares, que precisam se tocar, se subverter, se interromper, se encontrar, Eros e outros, obrigados a se relacionar e ter aulas pela Internet, obrigados a um “distanciamento social”, o qual deverão aprender, como aprendem os orientais do outro lado do mundo, essa distância asséptica, sem toques nem seduções, ou, antes, fronteiras, militares e estados de exceção.

O outro em causa.

Imaginarão o tom da mesa depois das refeições nesses últimos tempos, convivendo com meninos e meninas vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, tento descobrir que sociedade eles imaginam. Porque eles estão nos observando, os adolescentes e jovens de hoje, ao contrário de muitos de seus pais, nasceram cheios de direitos e os fazem valer; eles foram os primeiros a se manifestar depois do 18 de outubro de 2019,* e se mobilizam a favor das mulheres, porque querem desconstruir a heteronorma, aquela que dita uma distância absurda entre homens e mulheres, e sua linguagem se tornou inclusiva há algum tempo – tudo é um pouco francês na case, na familie, entre os amigues –, e eles têm certeza de que os vegetais vão substituir a carne, “a questão não é como, mas quando” , e deixam isso claro. Enfim, está tudo bem com essa geração mobilizada, exceto pela beleza, pelos espaços de liberdade pelos quais não brigaram, mas receberam como herança, porque esses meninos, sua geração, não têm problemas com big data; reconheço que prefiro que enterrem agulhas em meus olhos antes de doar minha liberdade a um Grande Irmão, mas eles, não. Para eles, tudo é uma questão, uma possibilidade de ser, “e se”, e se essa forma for efetivamente um remédio? E se, tal como a Coreia ou o Japão, intensificarmos a coleta de dados? O Estado saberá onde , quando e com quem você esteve; o Estado saberá se você vai ficar doente; o Estado tirará você de circulação caso seja um perigo para a sociedade; e viveremos sempre à beira de uma guerra civil, não declarada, obviamente, porque o Estado e suas metralhadoras estarão lá para evitá-la, e toda proximidade estará sujeita a esse tipo de controle, severo, pulcro, nada de relacionar-se casualmente – não, não, não: se você planeja se tornar íntimo de alguém, o Estado saberá como dizer se fulano é amigo ou inimigo. Penso com que rapidez a lógica do emoticon, joinha para cima, joinha para baixo, se integrou a seus julgamentos. A pergunta de Agamben, então, faz muito sentido: o que é uma sociedade que não tem mais valor a não ser o da sobrevivência?

Por isso respondo apelando à beleza, ainda que isso soe piegas, porque a beleza existe, porque em cada um de nós há vontade de ser e podemos imaginar outra maneira que não seja a coercitiva, podemos imaginar liberdades, meninos, meninas, adolescentes e jovens que queiram se tornar adultos reais, aqueles que assumem responsabilidades e que sabem, porque imaginaram, que as sociedades podem ser espaços que vinculam, de apoios mútuos, de relações estreitas. Como diz Cheng, “a verdadeira beleza é aquela que segue o sentido da Via, entendendo-se que a Via não é nada mais do que a marcha irresistível rumo à vida aberta, um princípio de vida que mantém todas as suas promessas abertas”.

 

 

 


Referência aos protestos de outubro de 2019 no Chile, também denominados “Estallido social en Chile”, “Chile despertó”, “Crisis en Chile de 2019” e “Revolución de los 30 pesos”. Trata-se de uma série de manifestações e motins ocorridos em Santiago inicialmente, e que se espalharam por todas as regiões do país (NT).

 


IMAGEM: RELEITURA DE DEAN ROHRER SOBRE A PINTURA “NIGHTHAWKS”, DE EDWARD HOPPER
TRADUÇÃO: CÍCERO OLIVEIRA