“Lectocrime”, ou como a mediação pode matar o gosto pela leitura
Quando comecei a pensar no tema do Encontro, pensei em escrever algumas linhas sobre a generosa tarefa que muitos de nós, mediadores, fazemos – e isso seguramente inclui vocês –, e também a mim, com meu blog Anatarambana,1 com o qual tento fazer uma mediação com adultos, pois não trabalho diretamente com crianças.
Mas logo me dei conta que seria bom colocar um pouco de pimenta nesta discussão, porque o tema coincide com algo que me preocupa há muito tempo, e com uma maneira de mediar a leitura que, longe de criar leitores, muitas vezes nos distancia dos livros e da leitura.
É um tema sobre o qual comecei a falar faz tempo com uma amiga, e carinhosamente o chamamos de “Lectocrime”, o crime da leitura, pois basicamente falamos de algumas práticas de mediação de leitura que não funcionam e continuam sendo utilizadas. Ou como certa dinâmica geral dos que fazem a mediação da leitura afeta os leitores. Quando falo de mediadores, refiro-me sobretudo a pessoas como promotores de leitura, editores, criadores, docentes, bibliotecários e pais – isto é, todos os adultos.
Falo da perspectiva de um país como a Espanha, com muitos anos de trabalho institucional e escolar de fomento à leitura e onde, segundo as estatísticas, mais de um terço da população adulta não lê livro algum. De modo que há muito que refletir em um país com bibliotecas cheias de livros e de livre acesso, com uma produção ampla de livros infantis e com livrarias e feiras para acessar os livros. Sem dúvida, lemos mais do que há 20 anos, mas não conseguir ter um espectro mais amplo de leitores continua sendo uma constante preocupação.
Minha intenção, enfim, é simplesmente refletir sobre algumas questões que me parecem influenciar no precoce abandono da leitura, e em outras que fazem com que os livros deixem de acompanhar os leitores, apesar de nossos esforços. Debati algumas dessas questões muito amplamente em meu blog, e outras espero fazê-lo mais para frente.
Escolhi SEIS. Há mais, mas quero começar com essas.
1. A infantilização da leitura. Há muito tempo (e me parece que ainda hoje), eram feitas adaptações de obras clássicas. Vou citar dois grandes leitores, Bioy Casares e Jorge Luis Borges, pegando os diários do primeiro:
“Quarta-feira, 12 de outubro. Folheamos os absurdos livros de leitura (para crianças que estão aprendendo a ler) do peronismo. Digo que aprendi a ler com o Vejo e leio.2 Borges acredita ter começado com O nenê.3 BIOY: “Quando menino, era muito esnobe e não lia os livros da Biblioteca Araluce porque eram obras famosas, adaptadas para crianças (lia livros para criança, como Pinóquio; mas não admitia obras para adultos adaptadas para crianças)”. BORGES: “Comigo acontecia algo parecido. Um dia estava lendo com muito orgulho a História da Grécia, até que vi que na capa estava escrito ‘Adaptada para crianças’”.
A infantilização da leitura hoje vem da mão dos álbuns. Um gênero que fez a produção entrar em colapso. Um gênero de que se fala somente quando nos referimos a “literatura infantil”. Um gênero em que vemos, a cada dia, obras insípidas, histórias escassas, quando não mal escritas, e que se apoiam exageradamente em ilustrações preciosistas. Às vezes, tenho a impressão de que há somente álbuns nas mãos das crianças. O que esse fenômeno significou para a produção editorial é um retrocesso de livros de narrativas de fôlego. As crianças que têm mais de 8 anos enfrentam o drama de não encontrar livros que lhes acompanhem na tarefa à qual se aplicaram durante anos e para qual não encontram estímulos.4
2. A escolarização da leitura. Recentemente, trabalhei com a equipe editorial de um grupo que tem muitos livros de texto e, antes de começar, alguém disse: “os planes de lectura [planos de leitura]5 morreram”. Fiquei muitíssimo alegre ao escutar isso, e tivemos uma discussão muito interessante sobre o assunto. Na Espanha, chamamos “planos de leitura” uma relação de livros que as editoras oferecem como leituras opcionais nas escolas. Para acompanhar esses livros são anexados cadernos com atividades em que as crianças, depois de ler o livro selecionado pelos adultos, devem completá-los. A experiência de leitura fica simplificada ao máximo, a uma série de perguntas para ver “se entenderam tudo”. Ou seja, perguntas do tipo: escrever os nomes dos personagens principais, ou fazer listas de elementos que aparecem no livro, entre outras coisas. Ontem, um escritor, deste Festival, comentava que sua filha – de 8 anos – recusava sistematicamente os livros de uma coleção que ela associava à escola. Nessa negação, ficavam fora de sua vista livros maravilhosos como Matilda,6 de Roald Dahl.
3. Nessa linha de lectocrime, nos encontramos com o famoso: “Fazer algo” depois de ler, que reduz a leitura a uma atividade manual, ou seja, para construir algo, que obviamente tenha a ver com o texto lido, fazer um desenho, ou até mesmo atuar como escritores, querendo mudar o final da história, ou inventando qualquer coisa que o texto nos inspire. O importante é que as crianças levem algo físico para sua casa ou para pendurar na sala.
4. O abandono da mediação. Refiro-me a esse momento em que deixamos de acompanhá-las. Lemos para elas durante a primeira infância, cada um de seus passos com a leitura foi uma alegria e, quando já sabem ler, simplesmente deixamos de ler para eles em voz alta, delegamos a seleção de leituras para que a escola a proponha, e deixamos de conversar com eles sobre aquilo que leem.
5. A chamada Superlij, que é um termo que, com a licença dos super-heróis, inventei para falar de um tipo de livros que cada vez mais são procurados com tremenda ansiedade. Livros para deixar as fraldas, para explicar o Alzheimer, livros PARA. Cada vez mais, parece que nós, mediadores, precisamos de um livro para dialogar sobre um tema. Dessa maneira, as crianças vão percorrendo seu caminho de leitores com livros que serão a segunda voz dos adultos: educativa, informativa e até mesmo moralizante.[7]
6. E, por último, a feminização da leitura. (E agora levanto o olhar para confirmar, uma vez mais, a estatística). Somos legiões de mulheres mediando a leitura. Mulheres que recomendam, principalmente, romances. Esse é um ponto que requereria mais tempo de exposição, mas a falta de modelos de leitura masculinos faz com que um grande grupo de homens não considere a leitura importante. A isso se acrescenta que a prescrição quase exclusiva de romances por parte das mulheres impede que os leitores de livros informativos se sintam parte da comunidade de leitores. Como já disse, esse é um ponto interessante a ser desenvolvido em outro momento.
Gostaria de terminar com uma citação que adoro. Porque muitas vezes falamos dos leitores como se eles fossem uma massa uniforme sobre a qual podemos incidir em sua totalidade, e nada mais distante da realidade do que isso. Talvez um ponto a mais do lectocrime seria considerar todas as crianças iguais diante da leitura, sem levar em conta suas preocupações, necessidades, gostos e caprichos. Sem pensar que cada leitor constrói seu próprio caminho com os livros que ele mesmo escolhe e da maneira mais inesperada. Por isso, quero terminar com essa citação do escritor norte-americano Dan Fante, filho do escritor John Fante, que lembra como iniciou na leitura e que, inclui num post,8 numa série sobre como se chega à leitura de diferentes maneiras:
“Em uma ocasião, papai se ofereceu para me pagar para ler: cinco dólares por livro. Disse-me que escolhesse um livro da estante da sala, que ia do teto ao chão. Encontrei O chamado da selva,9 de Jack London. Gostava das cores da capa. Papai pegou o livro e me deu.
– Esse cara foi um grande escritor. Você escolheu bem.
Sessenta dias depois, tinha devorado cinco romances de London. Tinha sido fisgado para sempre”.10
Texto originalmente escrito para apresentação em mesa redonda sobre estímulo à leitura, no IV Festival Iberoamericano de Literatura Infantil y Juvenil, organizado pela Fundación Santillana11 e celebrado na cidade de Buenos Aires, em setembro de 2017. Publicado em 5 de agosto de 2018 no site Anatarambana.
Notas
1. Disponível no link. (Acesso: 05 ago. 2018).
2. Em espanhol, Veo y leo. Trata-se de uma coleção de livros infantis especialmente projetada para motivar as crianças, com fontes grandes para facilitar a leitura e muitos pictogramas divertidos (N.T.).
3. FERREYRA, Andrés. El nenê. Buenos Aires: Ángel Estrada, 1895.
4. Falei desta questão em “Cansados del livro álbum”. In: Anatarambana. Disponível aqui. (Acesso: 05 ago. 2018).
5. Em português, seria o equivalente aos nossos “suplementos literários” ou “suplementos de leitura”, fichas de leitura preparadas pelas editoras, encartadas dentro dos livros, com questões e exercícios acerca do enredo das obras em questão (N. T.).
6. DAHL, Roald. Matilda. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
7. Falei sobre ela no seguinte post: “SUPERLIJ: llega la literatura infantil que nos salva de todo” In: Anatarambana. Disponível aqui. (Acess: 05 ago. 2018).
8. Cf. “Animación a la lectura. Seis ideas (I)”. In: Anatarambana. Disponível aqui. (Acesso: 05 ago. 2018).
9. LONDON, Jack. O chamado das selvas. São Paulo: Ática, 1999.
10. FANTE, John. Fante, um legado de escritura, alcohol y supervivencia. Barcelona: Sajalín Editores, 2012.
11.Disponível no link. (Acesso: 05 ago. 2018).
TRADUÇÃO TAIS DA SILVA PRADES VILLELA