Voluntários do compromisso com a leitura


Envolver-se no percurso de formação leitora de um estudante. Escutá-lo, descobrir suas preferências e ampliá-las, apresentando-lhe novas possibilidades, ajudar o outro a estabelecer ou fortalecer seu vínculo com os livros, a avançar nos seus aprendizados e a confiar nas suas conquistas. O desafio a que os voluntários do Programa Myra – Juntos pela leitura se propõem não é pequeno.

O Programa Myra – Juntos pela Leitura tem sua origem na cidade de Barcelona, uma cidade educadora. Seu nome original é Lecxit, o que em catalão significa dizer “leitura com êxito”. Quando chegou ao Brasil, ganhou este nome que, em tupi, remete às ideias de engajamento, integração, coletividade. E é esse o sentido ativo que damos ao voluntariado que participa dessa experiência.

Uma cidade educadora, na perspectiva da educação integral, tem como estrutura uma proposta de inclusão social que está presente em todos os espaços públicos. Pressupõe uma ideia de coletividade e compromisso social, na qual a responsabilidade pela educação é de todos. E quando dizemos “todos”, vamos muito além das instituições escola e família. Mas a perspectiva de educação integral das cidades educadoras não exime a instituição escolar da responsabilidade de garantir o direito ao acesso sistematizado ao conhecimento, nem visa substituir políticas públicas efetivas e duradouras que garantam o acompanhamento do ensino e da aprendizagem da leitura na escola. São instâncias complementares, que se apoiam mutuamente para, como o próprio termo diz, integrar diversas esferas que precisam ser contempladas quando pensamos na educação de crianças e jovens.

Por isso, neste contexto, o objetivo de ter uma população com acesso à educação de qualidade é uma preocupação de todos os habitantes de uma cidade educadora. E isso faz toda a diferença. Alguém poderia perguntar, por exemplo, qual a relação da educação de crianças e jovens com a vida de uma pessoa sem filhos. A resposta é bastante simples: quando temos uma educação de qualidade para todas as crianças e jovens, evitamos problemáticas como evasão escolar, baixa escolaridade e desemprego que, por sua vez, podem aumentar os níveis de desigualdade social, gerar violência, entre outras questões. Uma vez que todos cuidam dessa questão, ampliando a responsabilidade para além da escola e da família, as chances de se viver em uma cidade mais equitativa, com igualdade de oportunidades, aumentam. E isso, sem a menor sombra de dúvida, afeta a todos de forma muito positiva.

Uma cidade educadora pressupõe, portanto, espaços de aprendizagem e atores educadores (que não substituem, de maneira alguma, os professores) em espaços públicos, como ruas, avenidas, parques, estações de ônibus, de metrô, contemplando a ideia de educação como algo que nos permeia todo o tempo, ao longo da vida. A verdade é que a essência dessa ideia está na perspectiva de que as oportunidades de aprendizagem estão em todo lugar, na interação e no diálogo com qualquer pessoa. Essa visão sobre a educação tem uma potência enorme e é capaz de contribuir para a diminuição das desigualdades de forma a gerar sociedades mais justas. E é aqui que entramos, agora, com a perspectiva que queremos ressaltar, sobre o conceito de voluntariado.

 

Conceito de voluntariado

Ao serem questionados sobre o que significa o trabalho voluntário, muitos brasileiros o associam às ideias de caridade, filantropia, tempo livre, ajuda, entre outros conceitos ainda muito relacionados com uma visão assistencialista e passiva. Ou seja, uma pessoa voluntária, nessa perspectiva, tem muito tempo livre, faz uma caridade quando pode, ajuda a outros sem se comprometer diretamente com a causa. Neste sentido, a passividade se faz presente porque quem realiza um trabalho voluntário sob a ótica acima citada não se relaciona diretamente com o impacto que sua ação pode gerar em outros. A pessoa, a princípio, faz ou doa algo que não lhe faz falta, numa relação em que o compromisso é relativo e, muitas vezes, instável. É preciso esclarecer que não queremos aqui julgar atitudes com essas características. Entretanto, queremos trazer à luz uma outra perspectiva em que a pessoa que realiza o voluntariado está atuando em busca de objetivos que tem em comum com a causa do trabalho realizado. É essa causa comum mobilizadora de ações voluntárias que vamos destacar, a partir do Programa Myra – Juntos pela Leitura.

Mariana Franco, gerente da Fundação SM Brasil e voluntária na Escola Estadual Alfredo Paulino, ajuda a explicitar a visão de voluntariado predominante no Myra: “Eu acredito muito na potência do voluntariado, que é uma troca. É uma via de mão dupla em que todos saem ganhando. Este é um trabalho inserido num compromisso de semear a cidadania e garantir efetividade no direito à educação, fortalecendo a própria capacidade de aprender. A leitura abre portas para o acesso a todos os demais conhecimentos. Por isso,  esta competência, enquanto direito, é fundamental para o desenvolvimento da criança e sua formação cidadã.”

Sulima Pogrebinschi, 52, está em seu segundo ano como voluntária Myra e fala sobre essa experiência: “Entendi que o voluntariado seria desempenhar meu papel na comunidade com as ferramentas que já possuo, não como uma missão ou doação, mas criando conexões sociais horizontais através da leitura. Ser voluntária dá uma nova dimensão à própria vida, é você quem escolhe o seu melhor para compartilhar com o outro e, na busca da realização desse desejo, a mágica se dá: você começa a tornar-se outro também, começa a perceber que nesse emaranhado humano que nos enredamos as trocas são fundamentais. Você aprende e você ensina. O compromisso com a mudança ganha um destino e deixa de ser um querer solitário para se tornar a realização do trabalho conjunto”.

Thais Caramico, 38, em seu primeiro ano como voluntária Myra, narra uma experiência que em muito se assemelha à de Sulima: “Já fiz outros voluntariados, mas nunca com essa intensidade que me faz querer, sim, que V. leia com mais fluência e rigor, mas que me obriga a compreender, antes do livro, seus sentimentos, desejos, ideias e ações. Quero para V. mais do que uma hora de leitura. Quero que ela sinta que o tempo e a língua são poderosos, e que ela aprenda a usar essas duas armas poderosamente, no presente e também no amanhã, independente e segura, para falar e fazer escolhas, para fazer parte do mundo e construir suas possibilidades. O Myra, para mim, passa por tudo isso – desde o momento em que preparo minha leitura, até a hora em que atravesso o corredor da escola para encontrar com ela”.

Em seu depoimento, Thais destaca o poder do aprendizado da leitura. É necessário esclarecer que, ao nos referirmos à leitura, não estamos falando do processo de alfabetização que se dá, via de regra, nas séries iniciais do Ensino Fundamental, mas sim do desenvolvimento de capacidades leitoras que provém, fundamentalmente, das trocas de experiências entre leitores, dos exemplos mediadores que formam vínculos e geram conhecimento e da frequência sistemática na realização das sessões de leitura.

Apesquisa Retratos de Leitura no Brasil, em sua última edição, de 2015, aponta que 65% dos entrevistados não leem livros de literatura e 46% não leem jornais (digitais ou impressos). Uma das considerações finais da pesquisa, relacionada à importância do papel da mediação de leitura, mostra que “os resultados (…) reforçam a análise de que o hábito de leitura é uma construção que vem da infância, bastante influenciada por terceiros (…), uma vez que os leitores, ao mesmo tempo em que tiveram mais experiência com a leitura na infância pela mediação de outras pessoas, também promovem essa experiência às crianças com as quais se relacionam em maior medida que os não leitores”.

O Plano Nacional do Livro e da Leitura (PNLL) traz eixos fundamentais para a superação progressiva desses dados, como por exemplo a democratização do acesso e o fomento à leitura e à formação de mediadores. Além disso, dialoga com os objetivos do Programa Myra – Juntos pela Leitura, não apenas no que diz respeito a melhorar a qualidade da compreensão leitora de meninos e meninas das escolas públicas brasileiras mas também de formar mediadores de leitura, como os voluntários engajados nesta causa que passam por um processo de formação ao longo de toda a permanência no projeto.

A educação básica, sozinha, tal como vem sendo concebida e gerida pelo poder público no país, não está dando conta de eliminar o analfabetismo, nem mesmo o funcional. É devastadora a quantidade de pessoas que se formam em universidades sem compreender o que leem e isso tem impactos sociais profundos. A compreensão leitora tem importância fundamental para a formação de sociedades críticas, autônomas e ativas na vida política de suas cidades. Dessa maneira, apoiar propostas que melhoram a compreensão leitora durante a infância e pré-adolescência, momentos da vida em que estamos formando vínculos com esse aprendizado, é de grande contribuição para a construção de processos que ajudam a formar sociedades mais igualitárias.

E é essa a causa que os voluntários e voluntárias do programa Myra – Juntos pela Leitura abraçam. É esse compromisso que assumem ao disponibilizarem seus preciosos tempos semanalmente para estarem junto a estudantes de 4º, 5º ou 6º anos de escolas públicas, compartilhando leituras. Leituras diversas, em suportes variados: textos literários, informativos ou instrucionais; em livros, jornais, revistas ou tablets. Não importa o suporte ou o gênero, mas sim a compreensão do que leem. E essa compreensão é construída na relação, na interação e no diálogo. Valdeir Geraldo dos Santos, 40, voluntário Myra, descobriu, ao lado da criança que acompanha semanalmente nas sessões, um suporte inusitado para realizarem uma leitura significativa: “ser voluntário é conduzir a sessão de forma que não se torne uma rotina cansativa para a criança, por isso, buscamos diversos tipos de leitura, outros ambientes dentro da escola para ler. Um exemplo disso foi quando, em um passeio pela quadra, paramos em frente a uma escada para lermos as palavras escritas nos degraus. Surpreso, o garoto que acompanho durante as sessões disse que nunca tinha parado para ler aquelas palavras!”

 

 

Não podemos deixar de falar dos preciosos tempos citados anteriormente. Não são exatamente tempos livres, mas sim tempos disponíveis. São tempos que se fazem possíveis quando voluntárias e voluntários acreditam que sua dedicação pode gerar transformações que terão variados impactos. Quando um estudante melhora sua compreensão leitora, muda sua postura em sala de aula, isso impacta também sua autoestima e, como consequência, pode impactar seus companheiros de classe. Os alcances produzidos pela ação desses voluntários são inúmeros: “é gratificante ser voluntário e perceber a evolução da criança no decorrer dos meses, vê-lo apreciar a leitura e perceber o seu engajamento. Mesmo nas férias ele foi na biblioteca do CEU e pegou um livro emprestado para ler em casa”, conta, orgulhoso, Valdeir.

Os resultados, que são mensuráveis, e objetivos, como o desempenho em avaliações e mudanças na participação dos estudantes, nos provam que a aprendizagem é favorecida quando há vínculo, afeto e compromisso, condições para a criação de sentido.

Vejamos um resultado, bastante concreto, do Programa Myra em 2018:

 

 

Reparem na potência que estes gráficos em relação à equidade! Os estudantes que não precisaram entrar no programa Myra (linhas laranjas) acertaram, em média, 60% (4° ano), 51% (5° ano) e 62% (6° ano) das questões da avaliação de leitura realizada no início do ano, e avançaram, respectivamente, 10, oito e seis pontos percentuais no final do ano, alcançando uma média de 70%, 59% e 68% de acertos. Aqueles que participaram do Programa Myra (linhas vermelhas) acertaram, no início do ano, 32%, 29% e 26% da avaliação e avançaram 28, 20 e 19 pontos, alcançando uma média de 60%, 49% e 45% de acerto no final do ano. Vejam como os estudantes participantes do Myra tiveram um crescimento de acertos da avaliação mais acentuado que os demais estudantes em todos os anos, com destaque para o impacto no 4° ano.

Por que chamamos a isso de equidade? Porque a partir da mediação de leitura realizada por uma hora semanalmente, durante o ano, as crianças e jovens atendidos pelo programa podem se aproximar do nível de compreensão de seus companheiros de sala, o que lhes proporcionará condições semelhantes de aprendizagem. É claro que inúmeros outros fatores interferem no alcance dos resultados projetados. Um cuidado que faz parte das ações do Myra é compartilhar com a equipe gestora de cada escola os dados coletados com as avaliações e com os instrumentos de acompanhamento, no intuito de somar esforços na busca de encaminhamentos que contribuam para melhorar a aprendizagem de todos.

Para além das aprendizagens das crianças e adolescentes que participam da proposta, temos inúmeros relatos das aprendizagens dos próprios voluntários que nos trazem a comprovação do que dizíamos sobre ser ativo na ação voluntária. São experiências de aprendizagem indicadas pelos voluntários: integrar a rotina semanal de escolas públicas, conhecendo de perto as demandas complexas destas instituições; fazer parte dos processos de aprendizagem de estudantes muitas vezes invisíveis no ambiente escolar, depois reconhecidos e comprovadamente mais ativos em relação às suas próprias aprendizagens; ampliar o repertório de leituras, na troca constante com outros voluntários e, principalmente, por meio das indicações e preferências leitoras dos estudantes.

Emily Stephano, 30, voluntária na Escola Municipal de Ensino Fundamental Amorim Lima, destaca: “um grande aprendizado do Programa Myra é o do contato com o outro, especialmente a reconexão com a infância – a busca por semelhanças, a forma de lidar com diferenças, a flexibilidade diante disso. Para quem não é profissional da área, a entrada no ambiente escolar, especialmente da escola pública, também nos oferece outro olhar e nos aproxima do que deveria ser de conhecimento geral, pois a maior parte das crianças do país estuda na rede pública e muitas vezes temos mais ideias desfocadas do que conhecimento real sobre este local – além de reforçar a consciência de que todo adulto é responsável por toda criança e que os locais públicos pertencem a toda a comunidade, que pode e deve contribuir para que sejam o melhor possível.”

E como não existe aprendizagem sem erro, há na experiência do voluntariado muito espaço para mudar de ideia e rever escolhas, como nos ensina Thais Caramico: “tudo é aprendizado: o que falar e não falar, o que ouvir e como continuar, entender como V. está naquele dia, o que selecionar para inspirar. Embora eu tenha minha lista de recomendações, às vezes me engano. Por exemplo: por algumas razões achei que ler sobre feminismo negro seria bom. E foi, mas naquele momento, enquanto ardiam e informavam as palavras de Jarid Arraes, percebi que V. só queria sair um pouco de tudo o que já vive, que não é muito fácil, e descobrir o que iria acontecer com o urso esfomeado e a metade do morango do ratinho, livro que sua mãe lia muitas vezes para ela, quando criança.”

Nota-se, nos depoimentos dos voluntários, que os estudantes atendidos pelo Myra transformam suas práticas leitoras, muitas vezes mecânicas, em práticas leitoras compartilhadas e cheias de possibilidades. E o voluntariado Myra também se transforma, já que constrói vínculos não apenas com seus pares leitores, mas também com a educação pública de qualidade, com as escolas, com gestores e professores, atuando como sujeitos educadores em suas próprias cidades.